quarta-feira, 28 de maio de 2014



LEMBRANÇAS DE UM APARTAMENTO


O que guardo daquele apartamento é tanta coisa.
Guardo lembranças.
As meninas...
Bem, vou contar um pouco aqui.
Uma senhora de nome Angelina era a síndica de um prédio de esquina. Velho prédio. Um dos apartamentos estava vago e o dono a autorizou a alugá-lo para várias moças. Era meio uma república, meio pensão. Eu fui tentar a vida na cidade grande e foi neste lugar que morei mais tempo. Saí de lá para me casar.
Bem, a dona Angelina pegava nas mãos uma quantia tal e se responsabilizava pelas contas da água, luz e demais despesas do apartamento. Era um apartamento de três bons dormitórios. Uma sala que foi dividida para dela se fazer mais dois dormitórios, um bom banheiro e uma cozinha. E mais as dependências de empregada. Este era o espaço que a Cida ocupava. Ah! Esta era uma figura! Vou contar um pouco dela a seguir.
Num dos quartinhos pequenos, que foi improvisado com uma divisória na antiga sala, morava uma professora de balé. Era uma moça ruiva, bonita. Pouco a víamos. Vivia a viajar. Vez ou outra eu a pegava dançando. Era uma delícia ficar olhando.
No quartinho que ficava ao lado deste morava a Luzia. Esta me causava enorme pena. Era linda e extremamente infeliz. Havia escolhido um caminho muito ruim.
No quarto que eu dormia éramos quatro e dormíamos em dois beliches. Havia um guarda-roupa com quatro portas, uma penteadeira com quatro gavetas. E uma TV em branco e preto que não pegava nada.
Quando para lá me mudei me acompanhou uma garota que eu havia conhecido num outro pensionato. Morávamos juntas e como não gostávamos daquela pensão horrível, saímos a procurar e este nos agradou mais.
Ela era engraçada. Gostava de ficar só de calcinha dentro do quarto e só as usava na cor branca. Não era feia, nem bonita. Casou-se com um rapaz de sua terra e se mudou logo. No lugar veio morar uma moça que foi uma das maiores amigas que tive na vida. Ainda nos relacionamos.
Havia uma moça de origem nordestina que já havia passado dos trinta e vivia a dizer que não se casaria. Que havia ficado para titia. Ela falava e eu ria... porque pressentia que não seria assim. Como não foi mesmo. Mas é uma longa estória.
A outra era uma moça que usava uns óculos de grau muito forte. Era a mais velha do quarto. Também não acreditava mais que encontraria o seu príncipe. E o encontrou. Casou-se com um político e mudou-se para Brasília. Nunca mais tive notícias dela.
No quarto ao lado eu me recordo que moravam duas mineirinhas, elas eram gêmeas. Bem diferentes em tudo. Uma delas cozinhava super bem. Neste dormitório, as moças que ocupavam o outro beliche viviam a se mudar. Só me lembro mesmo de uma que lá morou uns três meses. Era pequenina e recalcada. Tinha o maior complexo por ser filha de um senhor que nunca a reconheceu.
No último quarto do corredor morava uma ex-freira. Era maravilhosa! Fora freira por dezoito anos e segundo ela a irmandade a que pertencia foi extinta e então ela passou a trabalhar fora. Não tinha família e acabou indo parar lá.
Havia uma outra moça que tinha um trauma de infância e no meio da noite tinha pesadelos e gritava muito. Assustava-nos demais com aqueles gritos.
Das outras duas não me recordo muito. Quase não as via. Uma sumia por uns tempos e depois voltava. E a outra, uma moça de cor, não era de conversa. Vivia trancada no seu mutismo. O que me recordo mais dela é dos olhos que eram enormes e saltados para fora.
Ah! Houve uma época que lá também esteve morando uma moça do Paraíba. Esta nunca vou me esquecer. Eu comprava a carne e separava toda a gordura, porque sempre tive horror às partes gordas da carne. Quando ia jogar fora ela não deixava. Adorava comer aquelas gorduras. Enquanto eu comia só a parte magrinha do bife ela comia a parte gorda. Bem, gosto é gosto. Ela tinha a pele marcada por acne, era muito séria e uma vez foi assaltada bem perto de casa. Estava voltando de sua terra depois de ter passado lá uns quinze dias. O assaltante levou a mala e dentro é que ela guardava a sua chave e todo o seu dinheiro.
A cozinha era uma calamidade. Uma pia minúscula e feia. Um fogão de quatro bocas, onde só uma funcionava e mal. Tínhamos um vazamento de gás naquele fogão e sempre havia um cheiro desagradável no ar. Hoje em dia eu me recordo disto e penso no risco de vida que corríamos com aquele fogãozinho.
No centro da cozinha havia uma mesa de ferro. Tipo estas mesas de bar. Na verdade era uma destas mesas de bar. Quatro cadeiras a acompanhavam e quantas vezes nos sentávamos ali e ficávamos a conversar. A Cida nos fazia rir demais. Contava tanta lorota! Ela era obesa e certa vez me pediu que fizesse barrado de crochet num vestido de algodão cru que havia feito. O vestido era rodado, longo. Levei um tempão para fazer o tal barrado e que coisa ridícula ficava aquele vestido nela!
Ela viajou certa vez para a Bahia e veio contando muitas mentiras. Ficávamos ouvindo e fazíamos de conta que acreditávamos em tudo. E ai de nós se dávamos a entender que não estávamos acreditando!
A ex-freira era a bondade em pessoa. Eu sentia muito frio naquela época. Tinha só um cobertor e nas noites geladas ela me cobria com um casaco longo e umas toalhas de banho enormes. Ela ajeitava bem por baixo de meu cobertor e então eu conseguia conciliar o sono. Ela também costumava me preparar um chá delicioso. Eu a beijava e perguntava se não era um anjo.
Houve um tempo que morou conosco também uma uruguaia. Foi quando a moça de óculos se mudou. Depois ela acabou voltando. A uruguaia se chamava Dayse. Nossa! Como era bonita!
Havia algo que me irritava demais naquele quarto. Eram as manhãs. Eu não tinha necessidade de acordar muito cedo, porque entrava no trabalho às treze horas e elas faziam um barulho infernal. Por fim acabei indo fazer horas extras pela manhã. Mais para fugir daquilo.
Uma das moças ficava a se maquiar por uma hora. Era a moça nortista e a outra fazia um barulho tão grande com saquinhos plásticos. Tinha mania de guardar tudo em saquinhos.
Elas entravam e saiam do quarto um número incontável de vezes e eu perdia totalmente o sono. A solução que encontrei foi sair para trabalhar também. E com isso me dei bem, porque ganhei muitas horas extras naquele tempo.
Há muitas lembranças deste tempo e não cabem numa crônica, claro!
Um dia eu volto a tocar no assunto. Ainda mais porque naquela mesa de ferro da cozinha aconteceu algo que me marcou muito. Tivemos um grande susto. Mas vai ficar para outra crônica.

sonia delsin

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