LEMBRANÇAS DE UM APARTAMENTO
O que guardo
daquele apartamento é tanta coisa.
Guardo
lembranças.
As
meninas...
Bem, vou contar
um pouco aqui.
Uma senhora
de nome Angelina era a síndica de um prédio de esquina. Velho prédio. Um dos
apartamentos estava vago e o dono a autorizou a alugá-lo para várias moças. Era
meio uma república, meio pensão. Eu fui tentar a vida na cidade grande e foi
neste lugar que morei mais tempo. Saí de lá para me casar.
Bem, a dona
Angelina pegava nas mãos uma quantia tal e se responsabilizava pelas contas da
água, luz e demais despesas do apartamento. Era um apartamento de três bons
dormitórios. Uma sala que foi dividida para dela se fazer mais dois
dormitórios, um bom banheiro e uma cozinha. E mais as dependências de
empregada. Este era o espaço que a Cida ocupava. Ah! Esta era uma figura! Vou
contar um pouco dela a seguir.
Num dos
quartinhos pequenos, que foi improvisado com uma divisória na antiga sala,
morava uma professora de balé. Era uma moça ruiva, bonita. Pouco a víamos.
Vivia a viajar. Vez ou outra eu a pegava dançando. Era uma delícia ficar
olhando.
No quartinho
que ficava ao lado deste morava a Luzia. Esta me causava enorme pena. Era linda
e extremamente infeliz. Havia escolhido um caminho muito ruim.
No quarto
que eu dormia éramos quatro e dormíamos em dois beliches. Havia um guarda-roupa
com quatro portas, uma penteadeira com quatro gavetas. E uma TV em branco e
preto que não pegava nada.
Quando para
lá me mudei me acompanhou uma garota que eu havia conhecido num outro
pensionato. Morávamos juntas e como não gostávamos daquela pensão horrível,
saímos a procurar e este nos agradou mais.
Ela era
engraçada. Gostava de ficar só de calcinha dentro do quarto e só as usava na
cor branca. Não era feia, nem bonita. Casou-se com um rapaz de sua terra e se
mudou logo. No lugar veio morar uma moça que foi uma das maiores amigas que
tive na vida. Ainda nos relacionamos.
Havia uma
moça de origem nordestina que já havia passado dos trinta e vivia a dizer que
não se casaria. Que havia ficado para titia. Ela falava e eu ria... porque
pressentia que não seria assim. Como não foi mesmo. Mas é uma longa estória.
A outra era
uma moça que usava uns óculos de grau muito forte. Era a mais velha do quarto.
Também não acreditava mais que encontraria o seu príncipe. E o encontrou.
Casou-se com um político e mudou-se para Brasília. Nunca mais tive notícias
dela.
No quarto ao
lado eu me recordo que moravam duas mineirinhas, elas eram gêmeas. Bem
diferentes em tudo. Uma delas cozinhava super bem. Neste dormitório, as moças
que ocupavam o outro beliche viviam a se mudar. Só me lembro mesmo de uma que
lá morou uns três meses. Era pequenina e recalcada. Tinha o maior complexo por
ser filha de um senhor que nunca a reconheceu.
No último
quarto do corredor morava uma ex-freira. Era maravilhosa! Fora freira por
dezoito anos e segundo ela a irmandade a que pertencia foi extinta e então ela
passou a trabalhar fora. Não tinha família e acabou indo parar lá.
Havia uma
outra moça que tinha um trauma de infância e no meio da noite tinha pesadelos e
gritava muito. Assustava-nos demais com aqueles gritos.
Das outras
duas não me recordo muito. Quase não as via. Uma sumia por uns tempos e depois
voltava. E a outra, uma moça de cor, não era de conversa. Vivia trancada no seu
mutismo. O que me recordo mais dela é dos olhos que eram enormes e saltados
para fora.
Ah! Houve
uma época que lá também esteve morando uma moça do Paraíba. Esta nunca vou me
esquecer. Eu comprava a carne e separava toda a gordura, porque sempre tive
horror às partes gordas da carne. Quando ia jogar fora ela não deixava. Adorava
comer aquelas gorduras. Enquanto eu comia só a parte magrinha do bife ela comia
a parte gorda. Bem, gosto é gosto. Ela tinha a pele marcada por acne, era muito
séria e uma vez foi assaltada bem perto de casa. Estava voltando de sua terra
depois de ter passado lá uns quinze dias. O assaltante levou a mala e dentro é
que ela guardava a sua chave e todo o seu dinheiro.
A cozinha
era uma calamidade. Uma pia minúscula e feia. Um fogão de quatro bocas, onde só
uma funcionava e mal. Tínhamos um vazamento de gás naquele fogão e sempre havia
um cheiro desagradável no ar. Hoje em dia eu me recordo disto e penso no risco
de vida que corríamos com aquele fogãozinho.
No centro da
cozinha havia uma mesa de ferro. Tipo estas mesas de bar. Na verdade era uma
destas mesas de bar. Quatro cadeiras a acompanhavam e quantas vezes nos
sentávamos ali e ficávamos a conversar. A Cida nos fazia rir demais. Contava
tanta lorota! Ela era obesa e certa vez me pediu que fizesse barrado de crochet
num vestido de algodão cru que havia feito. O vestido era rodado, longo. Levei
um tempão para fazer o tal barrado e que coisa ridícula ficava aquele vestido
nela!
Ela viajou
certa vez para a Bahia e veio contando muitas mentiras. Ficávamos ouvindo e
fazíamos de conta que acreditávamos em tudo. E ai de nós se dávamos a entender
que não estávamos acreditando!
A ex-freira
era a bondade em pessoa. Eu sentia muito frio naquela época. Tinha só um
cobertor e nas noites geladas ela me cobria com um casaco longo e umas toalhas
de banho enormes. Ela ajeitava bem por baixo de meu cobertor e então eu
conseguia conciliar o sono. Ela também costumava me preparar um chá delicioso.
Eu a beijava e perguntava se não era um anjo.
Houve um
tempo que morou conosco também uma uruguaia. Foi quando a moça de óculos se
mudou. Depois ela acabou voltando. A uruguaia se chamava Dayse. Nossa! Como era
bonita!
Havia algo
que me irritava demais naquele quarto. Eram as manhãs. Eu não tinha necessidade
de acordar muito cedo, porque entrava no trabalho às treze horas e elas faziam
um barulho infernal. Por fim acabei indo fazer horas extras pela manhã. Mais
para fugir daquilo.
Uma das
moças ficava a se maquiar por uma hora. Era a moça nortista e a outra fazia
um barulho tão grande com saquinhos plásticos. Tinha mania de guardar tudo em
saquinhos.
Elas
entravam e saiam do quarto um número incontável de vezes e eu perdia totalmente
o sono. A solução que encontrei foi sair para trabalhar também. E com isso me
dei bem, porque ganhei muitas horas extras naquele tempo.
Há muitas
lembranças deste tempo e não cabem numa crônica, claro!
Um dia eu
volto a tocar no assunto. Ainda mais porque naquela mesa de ferro da cozinha
aconteceu algo que me marcou muito. Tivemos um grande susto. Mas vai ficar para outra crônica.
sonia delsin
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