quarta-feira, 28 de maio de 2014



MUITO ALÉM DE ONDE A VISTA ALCANÇA

Olhei o horizonte. O sol se levantava.
Erguia-se dourando uma paisagem encantadora.
Minhas manhãs são mais lindas porque assisto o nascer de um novo tempo.
Pensa que todos os dias são iguais?
Pensa que é monótono ver nascer o mesmo sol todos os dias atrás daqueles eucaliptos?
Pois não é.
Hoje o bem-te-vi estava gritando quando os primeiros raios surgiram.
Ontem foi uma borboleta que quase esbarrou em mim.
As folhas estavam cobertas de sereno. A manhã estava mais fria.
Eu pensei enquanto o sol se erguia em civilizações extintas.
Pensei nos homens que passaram por aqui.
Suas bagagens pesadas.
Seus amores, desamores.
Enquanto tantas pessoas dormem, eu caminho e penso.
Componho poemas sob um céu encantador.
Eu penso no ódio dos homens e no amor.
Hoje eu voei quando tudo ficou dourado.
Viajei para meu mundo encantado.
Minhas pernas me levaram pelas ruas e me trouxeram de volta para casa.
Mas, neste meio tempo, minhas asas me carregaram para um lugar onde a vista não alcança.
Um lugar onde volto a ser criança.
Neste tempo que visitei uma menina chorava e eu a consolei.
Eu prometi a ela que nós duas juntas ainda daríamos muitas risadas.
Prometi que caminharíamos até o fim dos tempos pelas calçadas a buscar a borboleta azul que ela tanto almejou alcançar.
Quando eu lhe prometi isto ela parou de chorar e eu me vi a abrir o portão. Um colibri que beijava uma flor de meu jardim quase trombou comigo e então eu me localizei.


 sonia delsin


PLANTANDO

Hoje, bem cedo, me chegou uma lembrança.
Olhei a terra e recordei minha infância.
Recordei meu pai. Suas mãos calosas, suas vestimentas grosseiras e seus belos olhos.
Meu Deus! Eu guardo tudo isto.
A roça, o preparo da terra, as sementes lançadas ao solo.
Ele ia à frente, abria pequenas valas. Atrás íamos, a mana e eu.
As duas com um embornal cheio de sementes.
Ele nos dizia quantas devíamos jogar em cada buraco e tínhamos já o traquejo para cobrir com terra os grãos.
Era uma maneira peculiar de virar o pé e cobrir as sementes com terra fofinha.
Depois esperávamos que nascessem.
Fechei meus olhos e trouxe aos dias atuais a plantação, as folhas se erguendo, se esticando em busca da luz e rasgando a terra.
Os pés de milho, as folhas tão macias.
Parece que sou menina de novo e fico assistindo o milagre do grão.
Parece que ainda estou lá parada assistindo o desenvolver da plantação.
Estas recordações vêm me lembrar a trajetória de meu viver.
O que andei plantando pela vida afora.
Andei distribuindo palavras, poemas. Falando em prosa e verso.
Estive distribuindo o que tenho de melhor dentro de mim, que é a poesia.
Estive plantando, amando.
Estive vivendo intensamente e valorizando cada instante neste planeta.
Estive vivendo um constante semear de palavras bonitas, tocantes, emocionantes.
Descobri que todos nós nascemos com uma missão. A minha foi nascer poeta e contar da beleza, da tristeza, da alegria.
Um poeta nunca é de todo triste, nem de todo alegre, mas é encantado com a vida.

sonia delsin 


RUÍDOS NO PORÃO

A casa antiga sempre me intrigou. O assoalho range à medida que caminhamos e as noites são estranhas.
Parece que ouvimos passos por toda a casa. O vento na janela sempre me assustou, porque ele parecia estar sempre me trazendo uma mensagem.
Durante o dia há o movimento da rua, os sons da vida, e estes pequenos ruídos noturnos nos passam desapercebidos.
Dia destes eu estive lá. Engraçado! Descobri que já não existe mais o temor dos ruídos em mim. Nem o temor, nem a dor.
O tempo vai carregando com ele tanta coisa.
Antes, eu me deitava e ficava ouvindo o silêncio. Esperava que os sons chegassem, um a um.
Estremecia quando parecia ouvir uma voz do passado, uma tosse insistente, uma pancadinha no assoalho.
Eu ficava na cama olhando o nada e ele me trazia imagens que pareciam dançar no teto.
Via pessoas que tanto amara.
São fabricados pela mente?
Quem sabe.
Sei que eles chegavam antes que eu adormecesse ou durante a madrugada e então eu esperava a manhã chegar.
Os sons no porão me punham mais medo. Era um estalo, um longo silêncio; outro estalo.
Era a madeira que rangia?
Costumávamos dizer que a casa era assombrada.
Nas últimas vezes que tenho dormido lá não fico esperando os ruídos, nem me assusto com nada. Fecho os olhos e trato de dormir e se acordo no meio da noite logo volto a conciliar o sono.
Eu decidi ignorar qualquer barulho.
Nesta última noite que lá estive fiquei a ouvir um som ao longe. Uma música que tocava em algum canto; depois ouvi um cão ladrar e o sono chegou. Dormi bem aconchegada ao edredom. As cobertas estavam tão fofas, tão macias. O sono me chegou tão levemente.
Descobri feliz que a casa já não me amedronta. Que ela guarda a estória do passado, como também guardo. Descobri que tudo isto é um motivo de alegria, porque tive momentos lindos, momentos significativos nela.
Tudo o mais perde o sentido. O que importa de verdade são os nossos sentimentos em relação às coisas.

sonia delsin 


O FANTASMA DO PORÃO

Acordei com o coração aos pulos.
Sob o assoalho fica o porão.
As batidas que ouvi foram fortes, repetitivas.
Estive sonhando?
Costumávamos contar histórias de assombração na infância. Eram tantos os causos.
Velho Sebastião!
Tantos anos. Na minha cabeça ainda as histórias que ele contava estão tão bem guardadas.
Há coisas que o tempo não leva, não carrega.
Fica tudo impregnado na gente.
A menina que fui sempre se encantou em ouvir e a mulher que ela se tornou ama contar.
Voltando a contar sobre o assunto que me moveu a escrever esta crônica. Bem, eu fiquei quietinha.
A cama estava tão quentinha e as cobertas eram tão macias.
Meu corpo estava adorando estar ali e minha alma amando estar na casa dos meus tempos de menina. Menina-moça!
Foi no início da juventude que a deixei.
A deixei em termos, porque sempre estive retornando aqui.
Na madrugada o silêncio voltou a reinar e meu coração por fim pôde sossegar.
Já ia adormecer de novo quando outra batida fez meu coração pular.
Estranho! Força da minha imaginação?
Talvez. Tenho essa facilidade de voar.
De mãos cruzadas sob a nunca fiquei a escutar.
De novo o silencio a dominar.
Que bobagem a minha!
Estou sempre a fantasiar.
Por que não me levantar e verificar?
Comprovando que não havia porque me preocupar seria mais fácil me tranqüilizar. Depois sim poderia adormecer em paz.
Descalça, eu deixei o leito e caminhei devagar. Acendi a lâmpada do quarto.
Peguei o corredor. Desci a escadaria escura e fui colocar a mão no interruptor... Antes que meus dedos o tocassem a lâmpada se acendeu.
Voltar correndo para cima? Esquecer tudo?
Ó cabeça fantasiosa!
Continuei parada ali. Nada ao meu redor além do que era tão conhecido meu.
Os armários estavam todos fechados. As janelas e portas, trancadas.
Nada mesmo fora do lugar.
Temos essa mania de aumentar as coisas no meio da madrugada. Criar fantasmas é tão fácil.
Coloquei os dedos no interruptor e apaguei a luz.
Fiquei pensando enquanto subia os degraus se não estive só a imaginar tudo aquilo.
De volta ao quarto esfreguei os pés no tapete e me enfiei embaixo das confortáveis cobertas.
Quando a manhã nasceu eu despertei e fiquei pensando no fantasma do porão que não enxerguei.

Pensei se realmente ele esteve lá ou se sonhei...

sonia delsin


UM NINHO NO VASO


Uma das casas que mais adoro visitar é a de uma tia que reside na cidadezinha onde nasci.
A casa é impecável e decorada com extremo bom gosto, apesar da simplicidade.

É um recanto de paz, cheira a limpeza e tudo está sempre muito organizado.
O quintal todo é um primor e o jardim possui uma quantidade imensa de flores e folhagens combinadas entre si.
Existe um sincronismo perfeito na distribuição das plantas transformando o terreno acidentado num ambiente peculiar.
Desde a infância sempre adorei estar lá.
A sensação é que adentramos em outro mundo quando lá chegamos.
Um mundo mais perfeito.
É uma sugestão? Uma impressão causada pela perfeição das coisas? Talvez sim.
A pessoa perfeccionista que é esta minha tia é simplesmente encantadora.
É uma mulher rara, de doces olhos azuis e mãos de fada.
Costurava divinamente e em tudo que faz capricha extremamente.
Na parte inferior da casa há uma varanda imensa toda arranjada com vasos magníficos. Há uma variedade enorme de folhagens. É um local fresco e muito agradável. As cadeiras nos convidam a sentar e lá ficar por horas.
Na véspera de Natal estive visitando-a.
Admirei cada recanto da casa. Fiquei simplesmente encantada com o rocambole divino que descansava sobre um móvel aguardando o horário da ceia.
Desci a singela escadaria que leva à varanda e ao jardim.
Meus olhos gostaram de admirar tudo.
Minha tia me pegou pela mão e disse que a acompanhasse para ver algo especial.
Diante de um vaso de xaxim ela parou e me mostrou algo fenomenal. Naquele canto da varanda uma samambaia arrastava suas folhas até o chão formando um cortinado verde.
Olhei e nem conseguia crer no que via.
Enquanto eu admirava tudo ela me contou que um sabiá estivera rodeando a casa. Depois ela pôde vê-lo a carregar material para fabricar um ninho.
E descobriu extasiada que ele escolhera um de seus vasos de folhagem para construí-lo.
Contou gesticulando, naquele jeito tão dela, que era maravilhoso poder admirar o trabalho da ave em construir seu novo lar e depois os ovinhos, os filhotes.
Ela assistia a mãe alimentando os filhotinhos bem de pertinho.
E me contou também que na manhã daquele mesmo dia é que eles alçaram voo e abandonaram o ninho.
Algo tão bem feito, tão perfeito. Algo que combina perfeitamente com aquela casa.
Eu nunca havia visto uma ave, com o porte de um sabiá, chocar ovos num vaso de folhagem.
Vou guardar para sempre em meu peito esta bela imagem. Era tão acolhedor ver aquele ninho construído aonde as folhas nasciam. Era a vida nascendo dentro da vida. As folhas novas envolvendo o ninho. Algo emocionante mesmo. 
 sonia delsin


AS MARCAS QUE FICAM...

Quando completamos quinze anos queremos abraçar o mundo.
Rodopiar, dançar, pular.
A vida é uma festa! Um sonho...
Para mim foi um pesadelo e vou contar porque.
Havia nascido com um defeito congênito que se manifestou quando atingi o ápice do crescimento.
Era uma atleta então e me preparava para um campeonato. Adorava atletismo e praticava saltos em altura. Cada vez conseguia aumentar um pouquinho mais a minha marca e estava certa de que naquele ano teria um ótimo desempenho. Pois bem, num de meus saltos aconteceu algo desagradável, pois caí sentindo uma intensa dor nos dois pés.
A treinadora preocupou-se e deu um jeito de me levar para casa. Minha mãe me levou a um médico: um clínico geral. Este me encaminhou para um ortopedista e fui levada para outra cidade. Quando lá cheguei, ele me examinou, fez muitos exames e deu o diagnóstico.
Falou encarando-me e nunca vou esquecer seus olhos atrás das lentes dos óculos. Era duro de ouvir aquilo, como era duro, meu Deus! Eu teria que fazer quatro cirurgias urgentemente, sendo duas em cada pé. Disse-me que já tinha tido a oportunidade de fazer uma cirurgia semelhante nos Estados Unidos e que no Brasil seria inédita. E o pior de tudo era que se eu não fosse operada com a maior urgência estaria condenada a não andar mais.
As cirurgias seriam delicadíssimas porque meus nervos precisavam ser alongados.
Bem, tratou também com minha mãe do valor a ser cobrado por todo o serviço. Era bem alto e meus pais não dispunham de recursos financeiros na ocasião, nem tínhamos convênios médicos.
Então fui para um hospital escola e aprendi a conhecer o que é maior que a dor.
Foi um tempo tão difícil, que palavras jamais conseguiriam expressar. Por um tempo fiquei presa ao leito e à cadeira de rodas. Mais de dois anos. O sofrimento era intenso, não só as dores terríveis, como o meu emocional que ficou lastimável.
Eu tinha que passar por tudo aquilo?
Existe um livro onde está escrito que uma menina deslumbrada com o mundo necessita experimentar tamanha prova?
Quem pode responder?
Depois de tantas tentativas precisei recorrer novamente ao primeiro médico que havia me visto, já que não conseguia encontrar melhora onde estava me tratando. Este, depois de todo aquele tempo passado, disse que poderia fazer as duas cirurgias que ainda faltavam, mas que já não podia mais garantir nada. Se eu quisesse correr os riscos... Já me aproximava dos dezoito anos...
Fui submetida a mais duas cirurgias e teria que aguardar pacientemente o resultado delas...
Só sei que tudo passou. Superei! Sei que depois daqueles anos eu voltei a andar e naquele dia eu fiz uma promessa: que nunca mais ficaria caída, que nada na vida me abateria a ponto de me fazer desistir de viver.
Cumpri a promessa feita a mim mesma, a um “ser” que é maior que eu, imensuravelmente maior que tudo. E segui assim, levantando depois de cada tombo, sacudindo a poeira e abrindo meu sorriso para recomeçar tudo de novo.
As marcas ficam?
Num canto da gente elas ficam sim.
Nem que sejam para nos servir de farol quando as luzes todas começam a se apagar.
Quando me vejo desistindo de algum sonho eu lembro da moça que fui. Lembro do lugar, do céu azul daquela manhã. Porque foi numa manhã que eu voltei a andar. Larguei as muletas de lado e falei que eu conseguiria.
Caminhei com duas pernas engessadas diante de minha irmã e minha mãe que choravam e riam de felicidade vendo-me reaprendendo a andar.
Desde então minha vida se tornou uma longa caminhada e as pedras do caminho passaram a não significar quase nada.

Aprendi a valorizar a minha jornada.

sonia delsin 


SONHEI... EU SEI...

Deus! O sonho desta noite foi magnífico!
Parecia real.
Sonhei que tinha asas. Não estas da imaginação que me levam a todo lugar que desejo estar. Umas asas de verdade. Rosas. Num cor-de-rosa das rosas que minha mãe cultivava no jardim de nossa chácara.
Elas eram lindas e tinham bem no centro uns pontos coloridos. Estes pontos brilhavam como um arco-íris.
Eram grandes, tão bem feitas e eu as olhava totalmente encantada. Nem podia crer que me pertenciam. Parecia uma criança que olha o mundo com olhos admirados.
Eu ensaiava um voo e quando dava por mim sobrevoava cidades, campos, rios, mares.
Era um pássaro lindo voando sobre o mundo dos homens.
No sonho eu recordava um livro que havia lido e pensava que de repente poderiam me atacar no espaço.
Sabia que não era normal ter aquelas asas e voar. 
Mas a sensação era tão boa. Eu deixava meu corpo solto e flutuava. As correntes de ar quente me levavam, levavam... arrastavam.
Então desejei estar num lugar que eu sei que existe e me senti triste porque sabia que não devia ir até lá.
Era um lugar proibido até para os seres alados.
Fiquei voando e pensando que poderia escolher um outro lugar para morar. No topo de uma montanha, à beira do mar, num lugar muito frio, muito quente. Eu poderia escolher.
Resolvi acompanhar uns pássaros e eles não me estranharam. Me aceitaram...
Eles migravam e senti que não estava desejando isso para mim.
Batia uma saudade no peito. Saudade de minha casa, de minhas coisas. Saudade de pisar o chão.
Descobri dentro do sonho que já não era mais a mesma pessoa de antes, já não era humana. Aquele corpo alado era o meu espírito. Tudo que eu recordava fazia parte do passado.
Eu estava partindo do planeta... as asas me levavam e aos poucos eu tomava consciência de meu estado.
Já havia morrido para as coisas da terra e estava num outro tempo. Desencontrada ainda eu voava em busca de mim.
Nesta busca eu acordei e me sentei na cama. Olhei meu quarto e mesmo na semi-escuridão reconheci tudo que me rodeava. Fiquei olhando o nada e pensando naquele ser alado. Ele mora dentro deste corpo que carrego? Um dia ele voará? Ele tem voado enquanto sonho?
Eu sei que sonhei... que voei... eu sei...

sonia delsin